quarta-feira, 30 de maio de 2007

Rasgos de Imaginação - Parte III: Oblivion




"Encaminho-me para o meu atelier.
Lá tenho um espelho enorme, e no meio da escuridão sento-me e observo-me para lá dos contornos do meu corpo. Vou acendendo velas em locais estratégicos, e ponho um tango de Piazzolla, de maneira a criar um ambiente acolhedor. Preparo a parede branca à frente do espelho, com um sofá preto como fundo, despojo-me da minha roupa e encaro a minha máquina como confidente.

Tiro fotos ao meu corpo em várias posições até esgotar as minhas máscaras… até a minha essência prevalecer, à minha dor, vergonha, raiva e consumir-me de emoções. Chorar agachada no canto do meu sofá preto e perceber o contraste da minha cor com o resto do mundo.

Vivo numa busca incessante da dor humana.

Sou obcecada pela dor, pela minha dor e pela dor dos outros. Gosto de a explorar até à exaustão e conseguir perceber até onde a perversão pode ir. Explorar os seus vários níveis, começando pela minha vida, pela maneira e razões que nos fazemos sofrer desmedidamente no nosso quotidiano.

E tentar compreender o grau de enclausuramento em que nos encontramos, no modo de vida moderno, tão cheio de vícios e de prazeres efémeros.

Reúno o que resta de mim e volto para a rua. Começo a fotografar o fervilhar de vida que aparece no Bairro Alto às altas horas da noite de sábado. O contraste entre grupos de amigos com mendigos a dormir no meio da rua, a prostituição num bairro pequeno de Lisboa.

A disposição destas dimensões e realidades diferentes e a sua simbiose fascina-me. Duas realidades a coexistirem e a ignorarem-se completamente numa dança desigual.

Deambulo por essas vias e escolhendo o meu caminho passo a passo, deixo o negrume tomar conta de mim e perco-me nos meus pensamentos até encontrar a passagem para a minha alma.

Vejo todo o género de figuras a suceder perante mim, parecem ser seres de outro mundo, deformados, estranhos, misteriosos… como entidades de outro mundo que escapam do sub mundo para a liberdade da noite para aí se imiscuírem com as restantes criaturas da nossa dimensão.

Revejo-me nelas… organismos com vida própria e culturas distintas e inteligíveis difíceis de compreender.

As trevas despedem-se da cegueira da noite…e o crepúsculo dá lugar ao dia. Esses seres ausentam-se temporariamente e os exemplares da nossa estirpe tomam conta da poesia do negrume e incendeiam-na com a luz do sol e os seus carpidos monumentais dos seus carros e indiferença à sensibilidade e harmonia destes povos subterrâneos que habitam por entre a inquietação e a incerteza da Vida…

Dou por mim na presença do Tejo, sereno e confiante na sua missão de escoar a sujidade do burgo para o largo do Oceano. Também quero desaparecer assim, no meio do nada e tornar-me parte dele, mas ainda não é o meu tempo… e a minha espera adivinha-se longa.

Volto para o entorpecimento da minha cama e aí coloco nas mãos de Orpheu a minha alma para ele a abrigar e protege-la dos meus sonhos já tão familiares… e aí espero pelo meu repouso tão prometido e desejado."

2 comentários:

papagueno disse...

Olá amiga, excelente imagem a ilustrar mais uma tão bela e sentida história. Gostei muito destes teus escritos, se bem que posso detectar alguma tristeza, talvez melancolia nas tuas palavras.
Beijinhos e continua a escrever.

Fauno disse...

Enquanto lia o texto consegui imagina-lo retratado em banda desenhada... numa série de frames que se desenvolvem à velocidade do som do obturador...

congratulo-te pela passagem!